
Era dia 25 de dezembro de 2021. Pela primeira vez em 31 anos, eu fui encontrar meu pai biológico. Uma semana depois, exatamente, sem maiores explicações lógicas, ele morreu. Há muitas maneiras de eu contar essa história, e não serei capaz de contá-la inteira aqui, nestas palavras. Em parte, porque ainda estou elaborando dentro de mim, em parte porque ela é digna de um livro ou de um filme. No mínimo, de um episódio de alguma série que fale sobre como essa nossa vida é muito doida.
Fato é que tenho dois pais: este, o biológico, chamava-se Enéas. Meu pai que me criou e me deu um nome, e muito mais, Caribé. Ambos se foram. Com meu pai Caribé conseguimos reconstruir nossa relação ao longo dos últimos anos de vida dele. Ele era meu melhor amigo. Continua sendo. Já com Enéas eu queria resgatar algo da minha história, pra preencher um vazio que existia. Veja, ele não me registrou, mas o registro do abandono foi uma marca que me acompanhou por esses meus 37 anos de existência terrestre. E foi por isso que fui encontrá-lo, no dia 25 de dezembro de 2021, depois de 31 anos sem vê-lo e sem contato com ele.
Um encontro emotivo, porém estranho. Me senti um pouco como aquela música que diz “festa estranha, com gente esquisita”. Era meu pai ali, mas era uma pessoa totalmente desconhecida. Eu senti curiosidade. Será que ele tinha os olhos claros (não consegui descobrir) como eu? Será que tinha algum trejeito que eu acabei por herdar? As máscaras – das quais não abri mão em nenhum momento desta loucura de pandemia – atrapalhavam bastante esse reconhecimento. Conectei-me quase que imediatamente com a irmã dele, Norma, que ficou indignada ao saber, naquele dia, que ele não havia me assumido quando eu nasci. Maria Flor brincava livremente com as crianças que também habitavam aquela casa. Veja (mais uma vez), ele era o único avô vivo da minha filha, e reconheci que era um encontro bastante importante pra ela também.
Passamos o dia todos juntos, entre desconfortos e curiosidades. Mais à noite, no meio de uma conversa, ele me disse que não tomamos decisões, que isso é uma ilusão. Que quem decide por nós é a vida. E eu, que não acredito nisso, comecei ali uma conversa que enveredou pelos caminhos da minha história que eu, afinal, havia ido ali buscar. “Por que você não me assumiu?”, “por que você nunca me procurou?”, “por que me abandonou?”. Tantos sentimentos que não cabem em perguntas ou em palavras prontas. Talvez nunca haja uma palavra ou uma frase capazes de expressar o tamanho do vazio de um abandono. Ele divagava, dava respostas que não atendiam ao meu desejo de explicação. Entendi que não ouviria o que eu queria, apesar de ter ouvido exatamente o que eu sabia que iria ouvir.
Não foi uma conversa de nenhuma maneira fácil. Entre lágrimas, fugas e respostas que não me satisfaziam, ele repetia, com constância, “eu te amo, minha filha”. Lá pelas tantas, eu já irritada com aquele vazio que ele não preenchia, perguntei a ele o que era amor. Ele poderia amar uma pessoa que não conhecia? Que amor era esse que ele sentia que não havia sido suficiente para que ele entrasse num avião e viesse me procurar? Que amor era esse que tinha permitido um hiato de 31 anos em uma relação de “pai” e filha? Eu não entendi aquelas palavras que me pareciam sair da boca dele tão levianamente, tão fracas para aplacar a minha dor.
Até o dia 3 de janeiro de 2022, dia do enterro dele. Ele morreu dia 31 de dezembro, mas só foi “achado” no dia 2 de janeiro. Ele estava em casa, deitado na cama. Morreu. Assim, sem mais nem menos. EXATAMENTE 1 SEMANA DEPOIS DE ME ENCONTRAR (quero ressaltar isso porque esse fato me causou uma enorme raiva). Mais uma vez, eu me senti abandonada por esse homem que, alguns dias antes, havia me prometido que, a partir dali, construiríamos uma relação. Achei ele covarde, mais uma vez. Ele não ficou por aqui pra me conhecer. Pra quem, sabe, efetivamente se tornar meu pai. Voltemos então ao dia 3 de janeiro. Voltei para Friburgo – cidade serrana do Rio, onde eu nasci e onde ele morava. Eu tinha acabado de sair de lá e de chegar a Niterói, onde estava hospedada, na casa de um casal de amigos. Na casa da Norma, irmã do Enéas, ela me entregou alguns álbuns de fotos que havia levado da casa dele no dia anterior. Me disse que achava que havia fotos comigo. Fui olhando as fotos e tentando entender quem era aquele homem, por que ele havia ido embora dessa forma. Até me deparar com a imagem acima.
Eu, que não tinha conseguido parar de chorar desde o dia anterior, quando recebi a notícia de que ele havia morrido, ao ver essa foto, não conseguia controlar as lágrimas, que desciam feito corredeira. Porque o que eu vi nessa foto foi amor, muito amor. E, de repente, eu pensei “caramba, esse homem realmente me amou. Dias atrás, quando ele repetia isso quase como se quisesse me convencer, acho que era verdade”. E aí, mais de repente ainda, me veio um pensamento – quase que mais um sentimento, uma lucidez, uma epifania. Talvez eu tenha entendido o motivo de ele nunca ter me procurado.
Minha mãe havia se casado com meu pai Caribé quando eu tinha 2 anos e meio. Saímos de Friburgo e viemos para Brasília. Meu pai era um homem instruído, que ofereceu a minha mãe e, consequentemente, a mim uma vida muito melhor do que eu teria se tivesse permanecido em Friburgo. Uma vida de outras possibilidades. Enéas era alcoólatra, já tinha 3 filhos mais velhos que eu (e teve mais um, depois), pobre (apesar de ter sido rico em vários momentos da vida – dinheiro que perdeu com bebida e tudo que vem dela), era um homem que vivia fugindo da morte – literalmente: ele foi colostomizado, sofreu acidentes de moto, havia a bebida. Diante do que eu estava prestes a receber, o que aquele homem tinha pra me oferecer? Talvez tenha sido isso que ele pensou. Talvez ele tenha sentido vergonha (de ser quem era, de não ter tido hombridade suficiente para assumir uma filha que era fruto de uma traição dele). Talvez ele tenha sentido medo de me procurar e me atrapalhar. Talvez ele realmente me amasse. Talvez ele tenha feito o melhor que pôde como, afinal, fazemos todos. Tudo isso eu pensei e senti em milésimos de segundos, enquanto chorava copiosamente, segurando essa foto. Ali, algo aconteceu em mim. A possível existência do amor que, até então, eu achava que era uma mentira certamente mudou algo dentro de mim. E eu não sei ainda o que, nem como isso vai, de fato, reverberar na minha vida. É tudo muito recente. Viver a morte do Enéas está me fazendo viver também, novamente, a morte do meu pai Caribé. Talvez eu esteja vivendo dois lutos ao mesmo tempo – já que o do meu pai Caribé eu não acho que vivi realmente, porque eu engravidei e não me permiti sentir plenamente a tristeza pela partida de uma pessoa tão importante na minha existência.
Independente do que vai acontecer a partir de agora, foi uma foto que me fez perceber que eu fui, sim, amada pelo meu pai biológico. E essa constatação é muito forte. Será ela capaz de preencher totalmente o meu vazio? Eu ainda não sei (sigo na terapia). Mas sei que amenizou muita coisa em mim. Sei que fez eu me sentir diferente. Uma imagem. Uma foto. Capaz de causar uma enorme revolução pessoal. Dá pra duvidar do poder da fotografia na nossa vida?
Ver essa foto e perceber tudo o que ela me fez sentir fez eu ter mais certeza ainda de que quero passar o resto da minha vida fotografando, registrando tudo o que cruza meu caminho. Quem sabe quando as fotos que eu faço hoje mudarão a minha história? A da minha filha? Quem sabe a cura que as fotos que eu faço hoje serão capazes de causar em quem olhá-las no futuro? Uma foto teve o poder de fazer eu me sentir amada. Isso não é, nem de longe, pouca coisa.
E você, tem registrado a sua vida?